DEUS É LÍQUIDO: EVANGELIZAÇÃO COMO IDENTIFICAÇÃO DO SAGRADO NAS CULTURAS HUMANAS


Dalmo Santiago Jr



Falar sobre evangelização no presente momento tem sido desafiador para a igreja cristã em suas diversas denominações católicas ou protestantes por representar significativa dificuldade no que diz respeito à penetração de outras culturas. O processo evangelizatório da negação efetuada pelos primeiros missionários que chegaram ao litoral americano, o avanço cientifico e tecnológico, a maior compreensão de outros povos e seu fortalecimento cultural diante da onda cristã configuram-se em obstáculos rígidos quase que impossíveis de superar.


O cristianismo vive numa crise sem precedentes. Termos como: espiritualidade, fé, amor ao próximo, graça, misericórdia, são deixados de lado por serem propostas antitéticas a verdadeira prática da igreja na dinâmica intra-social. Porém, mesmo nessas condições, a igreja possui uma ordenança vinda do próprio Jesus segundo (Mc 16:15) “Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura”.

Mas como evangelizar nesses “tempos modernos”, ou como alguns apressados já consideram “pós-modernos”? Como penetrar em culturas tão sólidas e complexas como as islâmicas, chinesas e russas? Não é possível mais sustentar as pretéritas formas de missão da negação cultural de outrem. Na verdade até mesmo no que se refere à terminologia “missão” tenho grande dificuldade de manter esse código como positivo. Missão traz a mente uma idéia de guerra, de conquista, de exploração, de negação, de morte. Não é a toa que possui seu lugar na linguagem belicosa dos poderes de defesa nacionais. Assim proponho uma nova forma de missão, tirando-se primeiramente tal conceito negador substituindo-o por “Integração”.

Para continuar essa reflexão gostaria de pensar uma alegoria que pensara ao raciocinar sobre a temática apresentada. Imagine um homem da zona rural que toma um recipiente nas mãos cheio de um líquido nutritivo e que começa a derramá-lo sobre o solo fértil (húmus). Nesse solo já havia semeado sementes de diversos tipos de arvores e semelhantemente, em mesma medida, regou-as com àquele líquido. Passado algum tempo as sementes germinaram saudáveis, desenvolveram-se em árvores frondosas e frutíferas.

Pensando sobre a alegoria é possível tirar elementos importantes para uma reflexão de uma “Integração” ou como queiram chamar de um diálogo inter-religioso. Vamos analisá-la. Pode-se pensar no pote de barro como Deus, ou expandindo essa concepção, como a imagem do Sagrado, está na verdade é a compreensão que desejo que tenhamos. O líquido dentro do recipiente, do “pote de barro”, é a essência desse Sagrado que é derramado sobre a terra, o húmus, evidentemente recorro aqui àquela linguagem mítica adâmica. Num sentido mais clarificador o líquido é a Revelação desse Sagrado no solo úmido e fértil. Essa Revelação penetra o solo e corre em diversas direções, múltiplos espaços até encontrar com a “cultura” semeada. O líquido embebe a semente com o caldo nutritivo fazendo com que o mesmo cresça e desenvolva-se segundo a parte que lhe coube desse mesmo líquido. Cada semente podería-se chamar aqui povo, cultura e comunidade. Ora sendo assim a Revelação de Deus liquidamente derramou-se sobre cada cultura e cada povo.

É importante destacar, para uma primeira perspectiva de evangelização, que Deus está visivelmente presente em toda cultura humana. Não há cultura sem que haja pelo menos uma manifestação de algo que seja maior que o humano e assim se chame isso de divindade. Onde há cultura humana e homens Deus aí está presente. A revelação de Deus foi diluída em cada cultura. Isso significa que podemos encontrar o mesmo Deus cristão nas demais divindades humanas. Não é a toa a similaridade que se encontra entre as narrativas cosmogônicas dos diversos povos.

Leonardo Boff retrata a imagem de uma narrativa interessante que vem da cultura dos índios Karajá. Narra que no inicio os karajás eram imortais e viviam como peixes circulando por todas as águas. Eles não conheciam o sol, as estrelas, as arvores, os animais terrestres. O Criador havia proibido permanentemente entrar pelo buraco luminoso sob pena de morte.
“Passeavam ao redor do buraco, admiravam a luz que saía dele, ressaltando ainda mais as cores de suas escamas. Tentavam espiar para dentro, mas a luminosidade impedia qualquer visão. Apesar disso, obedeciam filialmente. Mas a tentação de violar a ordem divina era permanente. Certo dia,um karajá violou o tabu da interdição”. (BOFF, p. 18,19) 
Ultrapassando o limite imposto sai do buraco e vê os bosques, o sol, as estrelas, as flores perfumadas, tudo encantava aquele Karajá recém liberto. Como não ler essa narrativa e não lembrar automaticamente da cosmogonia apresentada no mito do Gênesis? As similaridades não terminam por aqui. Olorun, Tupã e outras deidades aparecem como criadores quase que de forma equipare a narrativa apresentada por Boff. Parece, e creio nisso, que Deus revelara-se em sua infinitude transcendente na imanência no que Paulo denominou “multiforme graça”, uma graça, uma gratuidade reveladora para cada povo. É como se Deus quisesse que entendêssemos que cada povo tem uma revelação sua, ainda que não completa, mas significativa para entender o que vem a ser a divindade: o protetor da comunidade, aquele que orienta através dos oráculos a direção que o povo deve tomar etc.

O cristão mais cuidadoso e ortodoxo perguntará: Então o que você quer é que neguemos a evangelização, que a abandonemos? Não. Não proponho um abolir da evangelização, mas uma re-significação da mesma melhorando-a e restaurando automaticamente o sentido da igreja cristã na sociedade atual. O que seria essa re-significação da evangelização? Direi antes de alguém desistir nesse ponto de continuar a leitura de meus armgumentos.

Como foi percebido que cada cultura possui uma revelação de Deus é importante também destacar que nem toda observação que fazemos sobre determinado objeto é nítida. Conceituamos e re-conceituamos coisas a medida que descobrimos mais sobre aquele algo dado. Bem, com a Revelação funciona da mesma forma. Não significa que cada povo recebeu e captou a revelação da divindade como deveria, já que entendendo ser essa captação partindo da reflexão racional, ou seja, produto da razão. Como a razão é falha em muitas de suas reflexões também houve erros no que se refere a Revelação dada acerca do Sagrado. Nesse momento entra a importância da encarnação do Logos, ou de Jesus.

Jesus, a encarnação do próprio Deus a Terra, o encontro com àquele húmus, vem como orientador da revelação dada a cada cultura. Ele não vem a um povo como muitos defendem em suas apologias etnocêntricas, mas para o homem. Jesus anuncia através de sua mensagem a verdadeira face de Deus, não de Javé, mas de Deus em suas múltiplas revelações. É certo que os primeiros a coletarem seus ditos e historias carregassem ainda um pensamento judaizante e etnocêntrico da salvação de Jesus, mas é Paulo que vai entender o que Jesus realmente queria dizer.

Paulo em Atos 17.23 e 24, ainda que timidamente, quer mostrar que o Deus apresentado por Jesus já estava presente nas outras formas religiosas de outros povos, era necessário apenas mostrá-lo em sua própria cultura. Por isso, podemos chamar Paulo de o primeiro articulador de uma evangelização incultural. Ele notou Deus num dos deuses gregos, o “Deus Desconhecido”, ainda que eles não conhecessem certamente esse deus possuía seus adeptos e recebia oferendas no Areópago.

A evangelização passa então de ser uma atividade aculturalizante da igreja cristã para ser na atualidade um projeto de diálogo inter-religioso onde se percebe Deus no outro e em sua cultura religiosa. Esse tipo de evangelização faz com que as antigas barreiras sejam quebradas e novas formas de religiosidade sejam formadas. Pode-se pensar Deus como um mosaico. Cada peça possui uma cor definida que por fim na união de suas peças forma uma delirante paisagem. Cada povo, com sua fala sobre Deus, pode ao unir sua compreensão com a de outros povos produzir a verdadeira face de Deus, na união da miscelânea desses elementos soltos.

Dessa forma fechar-se-iam também as problemáticas ou as patologias encontradas nos diversos fenômenos religiosos. Cada religião seria o antídoto uma da outra para a eliminação de qualquer discurso anti-vida. Assim uma religião que aciona a morte de crianças como sacrifício para seu deus, como por exemplo a moloquita (Lv 20.2-5), deve ser conscientizada a abandonar tal pratica já numa totalidade Deus se revela como protetor da vida. Dessa forma uma atitude semelhante à moloquita seria uma deformação que houve na revelação por parte da compreensão racional de determinado indivíduo dessa cultura.

Entende-se então que a evangelização deve funcionar como uma Integração de cada revelação acontecida em diferentes espaços ideológicos e geográficos. Compreendendo Deus diluído nas diversas culturas humanas é se abrir para sua infinitude representada nos diversos discursos sobre o mesmo proferidos por estas mesmas culturas. Aceitar o Sagrado assim, repartido e plurifórmico, é estar ciente de um Deus mais humano, não segregário, não-etnocentrico, totalmente plural, fluído, presente em tudo.




Teologia como Cristologia em Marcos

Não há como buscar as fontes necessárias para a configuração de uma teologia marcana sem se deparar com o papel significativo da obra de Jesus presente nos textos evangélicos. Os Evangelhos em sua totalidade sempre põem em destaque a figura emblemática de Jesus com dotes relevantes que o identificam, na maioria de suas colocações, ou como um rei ou profeta. Quando se faz uma pesquisa do texto de Marcos percebe-se significativas diferenças na forma como o autor focaliza a pessoa de Jesus que por fim, segundo diversas sistematizações que vão resultar numa cristologia marcana, é apresentado não com características suprasagradas, alienado como se pensa em muitos meios acadêmicos extra-teológicos. Marcos revela uma face de Jesus não tão nítida, obscura, e divergente teologicamente dos outros Evangelhos no que se refere a própria cristologia. Para isso, como será apresentado, Marcos tenta fincar a figura de Jesus através do que o mesmo se denominou: “Filho do Homem”. Dentro dessa linha de pesquisa faz-se interessante observar como Marcos se utiliza dos títulos empregados a Jesus para identificá-lo com figuras pretéritas como os profetas e nesse sentido Oscar Cullmann traz um forte contributo analisando esses títulos que são empregados por Jesus nos Evangelhos.
O Cristo de Marcos não era, como foi posto a pouco, um alienado judeu que perambulava pelas cidades palestinas gritando enunciados religiosos aos ventos. Sua mensagem arrebatava multidões por sintetizar de maneira clara e objetiva o que realmente a religião judaica foi convidada eticamente a fazer por Javé, mas que até aquele momento antagonizava tal convite ético. Pode-se perceber que Marcos apresenta Cristo como um critico social, como um oponente significativo à dominação não apenas do império, mas principalmente dos judeus sobre os judeus, da casta religiosa sobre os oprimidos plebeus, pela subseqüente subjugação cultural. Há um forte destaque para a idéia de um messias libertador dos oprimidos e dos pobres dando a entender que o principal papel de Jesus naquele momento era salvar o homem não apenas de forma “sobrenatural”, mas principalmente social. A salvação inicia-se nas ações benfazejas do Cristus caritus, do mestre que ama, que propõe uma nova realidade social. É imprescindível que se tenha essa idéia para melhor compreender o conteúdo teológico de Marcos.
A teologia de Marcos parte dessa cristologia de forte conteúdo social que, de certa forma, impulsionava as comunidades a se comprometerem no cuidado aos espoliados do sistema dominante da época, os romanos. A temática cristologica é perceptível compreendendo Cristo como um enviado de Deus para salvar os homens de sua situação de explorados. Não é a toa que os adeptos da Teologia da Libertação prefiram a mensagem teológica marcana mais que outros evangelhos pela centralidade de um Cristo mais humano e mais revolucionário, mais atento as mazelas sociais. Essa revolta, porém não é algo como o protótipo marxista da Revolução empreendida pelo uso violento da força armada desbancando a burguesia capitalista, mas uma revolta pacífica que se daria pela comunicação de um novo ethos às multidões que entendendo a mensagem transformariam aos poucos a realidade de dominação adquirindo a liberdade através da práxis do ágape.
Chedd Myers em sua obra “O Evangelho de São Marcos” afirma em diversos momentos como a teologia do Evangelho de Marcos perpassa por uma perspectiva crítico-social. A mensagem possui caráter parenético e aos poucos influencia a comunidade a assumirem uma práxis mais ativa dentro do contexto histórico onde estão inseridos. Teologicamente revela-se a configuração de todo um sistema bem intricado que medeia a Cristologia do “Filho do Homem” e sua proposta de salvação através da concretização do Reino de Deus. Pode-se afirmar assim que a Teologia de Marcos é centrada na libertação do oprimido, dos famintos (Mc 6,33), dos pobres (Mc 5,21), dos preconceitos raciais (Mc 4:35-41; 6:45-53).

A Proposta Teológica do Reino de Deus

O Reino de Deus é conceituado de diversas formas, até mesmo pela polissemia que parece apresentar nos textos. Em Mateus o conceito é Reino dos Céus, mas entende-se os dois como unívocos, embora a segunda tenha dado características ideais desse reino proposto por Jesus gerando muitos discursos díspares da original intenção do Nazareno.
Teologicamente o Reino de Deus em Marcos é o clímax da solução proposta por Jesus frente a caoticidade da realidade do status quo. O Reino de Deus é o resultado de uma ação ética que permita a coexistência entre os indivíduos, é o lócus de encontro onde a intersubjetividade ocorre de maneira plena já que os homens aí se entendem como sagrados e essa sacralidade só se adquire vivendo dentro da história de maneira ética, ou seja, sendo mais humanos, aprendendo a coexistir. Essa parece ser um elemento significativo tanto para entender o conceito de Reino de Deus em Jesus como o próprio título que ele emprega a si mesmo: “Filho do Homem”. Ser “Filho do Homem” é assumir a sua plena humanidade diante de suas ações. Dessa forma os ensinamentos de Jesus dentro desse contexto passam a idéia de que só o humano pode salvar o humano através da instituição do Reino de Deus na Terra. Dessa forma entende-se o Reino de Deus como o catalisador da libertação dos excluídos em relação a sua opressão frente a exploração as instituições religioso-judaicas e político-romanas.
Para uma definição de Reino de Deus Myers afirma que em Marcos concretiza-se uma nova ordem social na aplicação do Reino. A realização do Reino de Deus na concretude compreende, como coloca Myers, transformações interessantes. O Reino como Reconciliação Racial (4,35-41; 6,45-53). Esses textos referem-se a duas viagens que Jesus fez. Uma para Gerasa (4,35-41) e outra para Betsaida (6,45-53). Myers demonstra, através de uma pesquisa exegética dos textos, que essas perícopes representam muito mais que uma simples descrição de viagens missionárias. Jesus em ambos segue sempre para “o outro lado” que na verdade era a localização dos gentios. Jesus deseja atravessar o mar (lago) a fim de englobar a raça gentílica a proposta do Reino de Deus. Com isso a intenção não é outra se não fazer a reconciliação racial com os outros povos destituindo da cultura judaica o preconceito de inferiorização de outras culturas. Em ambas as narrativas surgem tempestades que simbolizam oposição “mítica semítica das forças cósmicas do caos e da destruição (como em 5,13; 9,42; 11,23)”. a essa reconciliação que é vencida quando Jesus chega do “outro lado” do mar (lago). O Reino de Deus configura-se num espaço para todos, onde todas as culturas se encontram sem serem estigmatizadas, um espaço para o pluralismo cultural. Pode-se dizer que a teologia que surge dessa narrativa torna-se uma teologia da despreconceitualização, uma teologia de inclusão total do outro em sua cultura e composição étnica (não mais exclusividade da etnia judaica).
O Reino de Deus surge também como Satisfação (Mc 6:33-44; 8:1-9) e isso é importante na compreensão teológica de Marcos já que a mensagem passada pelo evangelista é a de uma partilha justa que resulta na prática de uma justiça mais concreta. A narrativa conta a história de Jesus no deserto pregando ao povo judeu. Num momento dramático os discípulos percebem que a grande multidão não se alimentava desde a saída da cidade mais próxima. Jesus pedi aos discípulos que alimente a multidão, mas os mesmos dizem que não há alimento para tantas pessoas. Então ele pede que reúna tudo o que havia ali para comer. Nesse momento da perícope ocorre o clímax do milagre da multiplicação. Myers diz ser o milagre não há multiplicação dos alimentos, mas a partilha em oposição à economia de consumo autônomo no mercado citadino. A mensagem na verdade tem como objetivo mostrar a comunidade de o milagre da multiplicação pode ser realizado todos os dias no compromisso diário da partilha, do repartir o comum, do comunismo ético onde todos se sentem inseridos na comunidade participantes do Reino de Deus. A proposta de Reino de Deus só pode ser alcançada pela partilha equânime e benfazeja na comunidade. Em Marcos 8:2 a expressão “vieram de muito longe” dá a entender que essa partilha se estende aos pagãos que diligentemente participavam das pregações de Jesus. Essa expressão representa que a idéia ética da partilha é algo que extrapola os círculos de convivência judaico e inaugura uma perspectiva nova em Israel: a da inclusão do pagão até memso em suas necessidades mais primordiais. Daí a mensagem teológica de Marcos estruturar toda sua mensagem numa práxis. Nesse evangelho a práxis assume características significativas propondo que os que estabelecem do Reino de Deus é cada um daquele que assume a mensagem de Jesus como correta.


DOGMA E DISCIPLINA: O EFEITO COERCITIVO DA IGREJA COMO INSTRUMENTO DE REPRESSÃO DAS MASSAS SOB UMA PERSPECTIVA FOULCAUTIANA


*Dalmo Santiago


Pensar teologia, cultura e ética é sempre desafiador pela multiplicidade dialógica que a correlação temática apresenta. Refletir essa triple relação no que se refere a uma ética da Igreja equipare a uma ética do Estado atinge níveis de complexidade absurdos, mas possíveis de compreensão. A primeira coisa que deve-se fazer para analisar essa relação ética entre Igreja e Estado e, que elementos significativos a primeira pode corroborar para uma transformação do segundo em nível ético. É partindo da analise dessa relação indissociável que pretendo construir uma perspectiva mais dilatada da problemática caótica atual e em que grau de resolução desse mesmo caos a Igreja se situa a partir das reflexões do filosofo francês Michel Foucault e de uma abordagem analógica com a obra cinematográfica brasileira do diretor José Padilha, que muito contribui para a discussão a ser levantada. Por isso, não será discutido o filme em sua totalidade, mas a parte que cabe a chegada do Papa no Rio de Janeiro não esquecendo de que todo o filme se dá na melhor forma de “Vossa Santidade” se instalar próximo a favela.
Logo nas primeiras cenas o filme vai tecendo sua trama em torno da chegada do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro. Para isso a secretaria de segurança pública do Rio de Janeiro desenvolve uma série de ações de prevenção contra um possível atentado ou situações desagradáveis no que diz respeito a presença do sumo pontífice católico. Desde esse primeiro momento é possível identificar o grau de institucionalização e de poder que a Igreja possui frente o Estado. O Estado aqui funciona como aparelho de proteção da Igreja, uma segurança da instituição, que revela o entrelaçamento das redes poder existentes entre os âmbitos político e religioso.
O filme faz menção a Michel Foucault quando Matias entra no primeiro dia de aula na universidade. Apesar de não haver um explorar da temática foucaultiana é possível perceber o quanto o mesmo trata das relações de poder como engrenagem para que o tecido social funcione como dinamicamente. Pensar Foucault e poder relacionado a questão da Igreja é tocar em temática extensa repleta de significações e conteúdo já que a mesma funciona como máquina de poder que incluído no sistema funciona como órgão repressor e disciplinador juntamente com o Estado em suas jurisdições. Em Vigiar e Punir Foucault remonta a história processual da configuração dos sistemas de punição partindo da analise desses sistemas em alguns países da Europa, principalmente na França. Considera ele que a Igreja cristã teve significativa contribuição e participação nos modelos de punição medievais perdendo essa significância após a reforma desses modelos no que se refere a humanização da punição e o nascimento da prisão. Essa participação revelada por Foucault mostra o papel que a Igreja assume na conformação das massas produzindo o que denominou de enquadriculamento. Desse processo advém o controle dos indivíduos promovendo a ordem social. Dessa forma a Igreja funciona para o Estado e o Estado para a Igreja.
A problemática se aprofunda a partir dessa compreensão de “troca de favores” já que faz com que eticamente surjam questionamentos sobre o verdadeiro papel da Igreja na sociedade. Isso implica em uma indagação ainda maior e mais substancial: A função de Deus na sociedade é essencialmente de controle das massas? Como participante do poder dominante a Igreja perde àquele espírito humilde de auxilio aos menos favorecidos. É o que representação cinematográfica nos leva a pensar. A Igreja, através de seu maior representante chega ao Rio de Janeiro, o estado mais violento do Brasil, e para sua segurança traficantes, estudantes, crianças e policiais morrem num jogo abominável de violência e poder onde o Estado se mostra como o senhor absoluto sobre “bons” e “maus”. O papa não irá para refletir o problema da pobreza no Brasil ou propor melhorias na educação e na saúde brasileira. A intenção é apenas uma: relembrar a sociedade o vigor do poder religioso em âmbito estatal.
Alinhando-se ao poder vigente a Igreja sustenta e reproduz a ideologia do status quo como observou Marx: a ideologia dos dominantes. Assim se aparta cada vez mais do compromisso ético iniciado por aquele que dizem serem seguidores: Jesus de Nazaré. Sustentam a ética dos dominantes e fazendo isso automaticamente introjetam no corpo social o medo de ir contra a ordem estabelecida passando a adquirir caractere disciplinador e até mesmo jurídico. O bom cristão deve ser um bom cidadão.
O aparelho do Estado se beneficia da ação religiosa por ela produzir o que Nietzsche chamou “Espírito de Rebanho”. Foucault semelhantemente categoriza esse processo em seu enquadriculamento. A Igreja utilizando-se do conteúdo religioso manipula os indivíduos a se conformarem a espaços sociais definidos economicamente fazendo-os se conformarem com o papel social que foram forçados a assumir. Igreja, economia e Estado tornam-se a tríplice engrenagem motora principais para que o sistema e as conseqüentes formas de poder estabelecidas permaneçam como tal, sem mudanças significativas. Dessas formas básicas surge a microfísica do poder. A microfísica do poder sai das instituições para o tecido social a fim de produzir corpos dóceis, disciplinados e ordenados seguindo o mesmo modelo da produção em série da industrial.
A pergunta que surge é qual o verdadeiro papel da Igreja como instituição mantenedora de poder. Ela deve continuar simétrica aos anseios da sociedade neoliberal de exclusão, sendo indiferente a pobreza e ao sofrimento dos menos favorecidos, ou deve se colocar como contracultura combatendo o ideal do desenvolvimento econômico em detrimento do humano?
Partindo de uma perspectiva ética faz-se necessário que a Igreja retorne a seus idéias primários, àqueles que relevavam o comunitário sobre o particular, o grupo em lugar do individuo. Onde o poder era poder de construir, ainda que paulatinamente, uma realidade melhor para os indivíduos no sentido plural de pluralidade centrando na respeitabilidade e responsabilidade para com o outro a ação da Igreja. Com isso ela rompe as amarras burocráticas e parte para uma ação mais prática e renovadora. Mesmo dentro das complexas estruturas de poder ela funciona como poder que beneficia que faz refletir atuando como poder pedagógico instruindo as pessoas a se libertarem das sombras da Caverna atual, fazendo uma rememoração ao pensamento platônico. Uma tentativa que se mostra importante é a proposta trazida pelas CEBs, apesar de no cenário contemporâneo estarem passando por um processo de sufocamento. No entanto é importante lembrar que essas comunidades não nasceram do interesse da Igreja institucional em libertar aqueles que a muito estavam enclausurados nas fortes amarras do sistema, mas da igreja popular e dos intelectuais que constantemente produziam uma interpretação marxista dos textos bíblicos.
Tropa de Elite mostra a imagem de uma religião distante da realidade social prejudicada. Ele não aprece no filme a não ser pela televisão como religião da mídia, mas um foco que revela o poder da Igreja. Ela se mostra apenas presente como instituição, como ideologia, como representatividade de um código ético que deve ser lembrado, mas não praticado, pois concretizá-lo na práxis é assumir a negação que o praticante sofrerá e uma posição antagônica a corrente que segue o sistema atual, ou seja, seria abandonar o poder. Assim a Igreja aparece apenas como representação ideológica, seja pelo templo, párocos ou pelas predicas das obras que a instituição produz. Perigo que os atuais teólogos da libertação passam de suprateologizar tudo produzindo uma teoria prática que retorna a teoria, teorética para práxis teorética, ao ciclo vicioso e imprestável de uma quase “masturbação intelectual”.
A reflexão que faço sobre o filme faz-nos refletir sobre que realidade temos criado como Igreja e como podemos nos envolver a um verdadeiro projeto de salvação. Não entendendo esse caráter soteriológico como absurdidade sobrenatural, metafísica de metafísica, mas como quebra literal e prática da hipocrisia que a Igreja sustentou desde a subida ao poder com Constantino, da desmistificação de uma espiritualidade enojante, sem utilidade considerável para o bem humano, apenas para a fundamentação de uma alienação que permite o subjugar dos mais fracos pelos mais fortes. Passando a subir as favelas não como esse instrumento alienante, como ópio, mas como conscientizador, libertador, protetor dos desvalidos, dos excluídos, dos sem “poder”: ser verdadeiros pró-cristos e não anti-cristos.



E DISSE DEUS: TODO RACISTA É UM LEPROSO: UMA PERSPECTIVA TEOLÓGICA DO RACISMO NA PERÍCOPE DE NUMEROS (12:1-10).



Dalmo Santiago Jr




Refletir sobre a temática que envolve o racismo não é tarefa fácil, porém parece-me importante no que diz respeito a realidade do mundo atual. Somos em nossa maioria brasileira, numa população de aproximadamente 180 milhões de brasileiros, de etnia mesclada, mas de características gênicas mais próxima aos negros que aos brancos. Devido à forma de colonização escravista acionada a partir do século XVI pelos brancos europeus, no nosso caso por portugueses e espanhóis, uma gama de populações negras bantus e os jêjes-nagôs vindas do continente africano desembarcaram das naus e caravelas ao continente sul americano a fim de abastecer de mão de obra os engenhos e as fazendas dos senhores brancos.
Desde a subida nas naus no litoral africano de Moçambique, Cabo Verde e Cabo da Boa Esperança os europeus cristãos já haviam assumido uma posição preconceituosa em relação aos negros. Estes já eram considerados como inferiores tanto na questão racial como religiosa.
Diversos acontecimentos posteriores foram aos poucos revelando o interesse dos povos brancos europeus de identificarem a etnia negra como inferior e primitiva. No caminho dessa história vergonhosa está a antiga Faculdade de Medicina da Bahia situada no Terreiro de Jesus na cidade de Salvador se espelhou nas universidades européias no esforço de inferiorizar a pessoa e a cultura do negro através do processo eugênico. O negro e sua cultura passam por um processo de estigmatização o que vai dar nas diversas formas de preconceito étnico. Digo étnico já que a antropologia cultura desde o século XX tem negado a permanência da conceituação “raça” entendendo não haver diferenciação de raças entre os humanos, mas sim de etnias o que envolve mais uma relação de códigos gênicos que necessariamente suposições cientificas forçadas de capacidades intelectuais ou físicas.
Acrescido a essa descriminação étnica a Igreja, que aliada sempre ao poder dominante utilizou sua influencia política para impor sua forma religiosa, e , numa linguagem própria, considera todo tipo de conteúdo religioso afro assim como sua mística, sua dança, suas comidas e seus rituais demonizados. Além de demonizar a cultura negra a própria pessoa e vida do negro eram consideradas como sem valor algum. O negro era um animal como qualquer outro na fazenda ou nos engenhos de açúcar. Não tinha nem mesmo direito a ter alma.
Parto dessas premissas complexas apresentadas somente para que entendamos o processo que desencadeou toda a formulação de uma ideologia que desprestigiava e desprestigia o negro juntamente com sua cultura na vida social da contemporaneidade. Apesar de identificar a questão do preconceito em relação ao negro como elemento de minha discussão, desejo me refletir na verdade a toda e qualquer forma em que se manifeste o preconceito dito “racial” já que, entendo ser os preconceitos em sua totalidade similares quanto sua ação de produzir uma exclusão do outro preconceituado.
Um texto que me suscitou essa questão sobre o racismo, que poderia se chamar aqui de etnismo pelas explicações já dadas sobre a nova postura da antropologia cultural, foi o de Números 12:1-10. Pensar este texto fez-me indagar, ainda que em mim soubesse a resposta, mas mais como uma atitude reflexiva sobre as diversas posições da Igreja diante de múltiplas situações onde a mesma deveria tomar partido de algo, mas que infelizmente se colocava em favor dos opressores. Perguntava-me qual seria a posição de Deus em relação a essa temática tão complexa. Que solução poderíamos encontrar para a problemática suscitada?
O texto inicia com informação interessante “Miriã e Arão falaram contra Moisés por causa da mulher cuxita que este tomara, pois ele havia desposado uma mulher cuxita” (Nm 12:1). Numa primeira perspectiva esse texto não nos traria informação nova nenhuma, mas aprofundando na analise do mesmo é possível notar que há uma causa para que Miriã e Arão se rebelassem contra seu irmão Moisés. Moisés era um líder que havia mostrado sua competência diante de situações adversas que enfrentara o povo de Israel na peregrinação pelo deserto. Sua competência não poderia ser questionada. O que acho interessante nesse é texto é que normalmente somos levados a falar sobre ele numa compreensão de subversão a uma autoridade instituída, talvez por que em nossa mente esteja introjetada uma subserviência considerável a muitas autoridades que nos subjugam em todo tempo. Seria talvez um “deixar se levar” sem se perceber. Mas na realidade o texto é especifico em abordar a causa da rebelião de Miriã e Arão: “pois ele havia desposado uma mulher cuxita”. Aqui é importante que se faça uma análise etimológica da palavra para um entendimento mais clarificado da idéia que é expressa no texto. Em Gn 10:6 surge a pessoa de Cush como descendente de Cam um dos filhos de Noé. Cush é considerado o pai daqueles que possuíam pele negra. Sua descendência se concentrou no norte do atual Sudão, região desértica, e ali formou uma civilização baseada na pecuária como era de costume entre os povos seminômades e posteriormente sedentários do deserto. Voltando o texto fica explicito a causa da revolta de Miriã e Arão eles não aceitavam a união marital entre Moisés e a cuxita Zípora.
O texto continua configurando o pano de fundo da cena que virá na chamada de Javé a Moisés, Miriã e Arão para que entrem na Tenda do Encontro, local onde estava guardada a arca. Os mesmos entram na Tenda e Javé inicia um diálogo com os três e logo a nuvem da glória de Deus desce ao lugar sagrado. Na fumaça nenhum deles consegue enxergar um ao outro e a cena final dramática surge. Ao elevar-se a fumaça Miriã nota que está adoentada de lepra. Ora, aquela que estava menosprezando a escolha de Moisés passa agora a ser amaldiçoada por Deus. A enfermidade de Miriã revela uma postura ética de Javé realizando uma inversão de papéis: agora não mais a cuxita é a inferior aos olhos da própria Miriã, mas ela mesma. A condenação para lepra era um resguardo de sete dias longe do arraial para que não houvesse contagio segundo o que ditava Lv 13.
Essa reação de Deus diante de Miriã passa a ser uma discussão interessante por que vem trazer a uma reflexão sobre a posição de Deus diante de uma atitude racista entre os homens. Tal atitude gerou em Deus uma crise iracunda que revela quais os sentimentos da divindade em relação aqueles que se entendem como “raça superior”. Não é por que Israel era a melhor nação ou raça que fora escolhida por Deus, o que ocorreu foi o inverso, por serem um povo menosprezado, pequeno, sem nenhuma chance diante das demais estruturas tribais que co-existiam com eles é que foram chamados. Essa atitude de Miriã talvez refletia o pensamento de outros dentro da tribo hebréia, pois também Arão não aceitava a união de Moisés com uma negra.
Moisés no final da trama clama ao Senhor para que o mesmo tenha misericórdia de sua irmã, mas Deus não mostra qualquer tipo de sensibilidade diante da agonia de Miriã. Deus enfurecera-se de tamanha forma que não admitia nenhuma forma de perdoar a que cometeu esse pecado hediondo. No v. 13 Moisés roga, mas é logo interpelado por Javé que diz: “Se seu pai lhe cuspisse no rosto não ficaria envergonhada durante sete dias? Seja Miriã fechada sete dias fora do acampamento”. Para Deus o racismo implica numa atitude antitética a seu propósito primordial do Éden de relacionar-se um humano com o outro. É como se Deus dissesse: “Cuspo na face e desprezo aquele que despreza seu próximo apenas por uma distinção étnica, ou seja, “racial””. O lançar líquidos bucais nas antigas formas tribais parece ser um modo de humilhação do mais grave possível digna de total desprezo. Deus revela sua ira profunda acerca da atitude de Miriã mostrando sua total abominação perante o ocorrido. Assumir a proposta de Deus é romper com toda forma de racismo, é aceitar o Outro não apenas dentro de sua cultura, mas como pessoa, como similar a mim mesmo, digna de todo afeto, respeito e aceitação. Pois para Deus não há “raças”, povos, etnias, superiores e inferiores, mas seres humanos que por serem diferentes genicamente são especiais. Por isso de fato é necessário entender que para Deus todo racista é um leproso em sua própria putrefação interior como desumano.

DESCRIÇÃO DAS FASES DA PESQUISA SOBRE O NOVO TESTAMENTO E A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO DA TEOLOGIA DO MESMO SEGUNDO HASEL E GOPPELT


Produzindo uma análise entre os meios metodológicos de Hasel e de Goppelt é interessante como ambos vão delineando, pela maneira histórica, as linhas de pensamento de sua metodologia. Traçando as perspectivas de ambos os autores sobre o produto de uma Teologia do Novo Testamento nota-se como são análogos e como também tocam em fundamentos muito parecidos e significativos para uma melhor compreensão dos cenários onde vão sendo constituídos as variadas formas de perspectivar a teologia bíblica. Assim pode-se dizer que, buscando uma Teologia do Novo Testamento que possui uma mesma genésica, parece ser os caminhos propostos por ambos viáveis há uma proto-explicação dos textos neotestamentários.
A Reforma é para Hasel e Goppelt, o ponto de partida de uma constituição de Teologia do Novo Testamento. O primeiro traça uma linha histórica que vai do cientificismo copernicano, passando pela revolução racionalista descarteana (que prepara as bases da compreensão histórico –critica dos textos), colocando também pontuações significativas sobre como vai se configurando uma neoforma de se interpretar os textos bíblicos a partir do Iluminismo.
Antes da Reforma, diz Hasel, a interpretação exata da Bíblia era identificada como a mesma coisa que a dogmática eclesiástica. Assim a interpretação estava sob poder monopolizador da Igreja. Com a Reforma, e principalmente com a centralidade da interpretação bíblica nela mesma, como sugeriu Lutero, a tradição vai sendo desconsiderada no processo interpretativo decisivo. Dessa forma somente a Bíblia daria a hermenêutica certa sobre si. Não seria necessário a utilização de outros textos complementares.
Com o iluminismo, e uma nova crença na razão, os textos passam a ser considerados não sagrados, mas meramente históricos. Com isso a linha de pesquisa para esse texto é o mesmo para qualquer outro texto antigo. Aos poucos as Escrituras vão perdendo sua autoridade divina. Johann Philipp Gabler é um dos que foram influenciados por esse pensamento afirmando que as Escrituras são puramente históricas e não dependem da dogmática para serem entendidos. Porém é com Semler que vai se configurando o método histórico-crítico e que passa a ser o modo mais coerente de se hermeneutizar os textos bíblicos.
Goppelt parte também de um eclodir de idéias teológicas a partir do século XVI com Lutero e sua insatisfação em relação a hermenêutica engessada da Igreja. Porém sua pesquisa segue um pouco mais detalhada percebendo como vai se configurando a idéia moderna do criticismo histórico em relação aos textos bíblicos. Com a derrocada do escolasticismo e o surgimento do pensamento racionalista de René Descartes no século XVI todo um modo de pensar o mundo muda. O racionalismo passa a ser quase que endeusado como nova forma de se considerar a verdade das coisas inaugurando o que se denomina de modernidade. Mas foi com a revolução cientificista de Nicolau Copérnico que novas perspectivas foram sendo aplicadas à Bíblia. Agora a ciência não depende mais das informações da Bíblia, mas a Bíblia é que precisa ser interpretada a luz da razão cientifica afirma Hasel. O surgimento do pensamento moderno analítico-criticista faz com que o cristianismo, e conseqüentemente seu modo de interpretar a Bíblia, entre em decadência. Com o Iluminismo e a supervaloração da razão essa crise se acentua. É nesse período, no século XVIII, que surge o método histórico-crítico que vai mudar a forma de se ver os textos. Principalmente os bíblicos que são considerados não inspirados por uma deidade, mas históricos como qualquer outro texto antigo.
Hasel percebe também como o protestantismo por pouco não cria para si uma solidificação escolástica da dogmática, igualando-se a Igreja católica, e como foi que o pietismo fez com que a linha de pensamento protestante voltasse a valorar as Escrituras no processo de interpretação da mesma.
A Igreja pós-NT não possuía uma teologia sendo o texto interpretado pelos dogmas eclesiásticos. Com isso a igreja sempre desfrutava positivamente das Escrituras. Mas Goppelt mostra como, no decorrer do tempo, o modo de interpretar o texto chegou a níveis extremos como o de compreender os textos bíblicos como meramente históricos. Para isso é iniciada uma série de pesquisas que desejam remontar todos os elementos possíveis a fim de chegar ao Jesus histórico. Tentou-se também criar uma imagem histórica da história da igreja primitiva procurando saber o porquê de os discípulos entenderem Jesus como Messias mesmo depois de sua morte encontrando, por sua vez na forte personalidade demonstrada pelo mesmo a razão desse messianismo. Essa tentativa foi feita por Wilhelm Bousset. Que ainda percebe o surgimento de uma “dogmática da comunidade” que influenciará significativamente na compreensão sobre a pessoa de Jesus.
Surge então o pastor Karl Barth que vê na perspectiva meramente histórica um problema, já que ela não pode abarcar a totalidade interpretativa do texto tendo uma consideração unívoca, apenas pela história. Para Barth o texto deve ser trazido a contemporaneidade para ser entendido pelo homem do século XX. Essa é a hermenêutica certa. Bultmann, porém vem antiteticamente à Barth afirmando que tanto o caráter histórico quanto a hodiernidade do texto devem ser considerados na interpretação do texto. Ou num melhor entendimento, tanto a história como a ação kerigmática, é relevante nessa busca. Aqui se trata de uma compreensão meramente histórico-filosófica. Mas houve modificações também na escola bultimaniana por parte de seus alunos e teóricos como Ernst Fuchs (em relação a negação da fé pascal), Gerhard Ebeling e Herbert Braun (que inclui até mesmo Deus na demitologização). Alguns passaram a dar mais conteúdo ao Kerigma enquanto outros tentavam demitologizá-lo.
Goppelt direciona seu texto ao desenvolvimento da pesquisa e da problemática abordando sobre Johann Christiann Konrad Von Hofmann e sua história da salvação. Hofmann propõe que o texto seja lido a partir de uma linearidade entre o AT e o NT de forma que aquilo que é profetizado dentro do contexto veterotestamentário é cumprido no neotestamentário. Assim a interpretação deve ser considerada de forma retrospectiva dos acontecimentos do passado antiqüotestamentário. Nesse contexto Hasel afirma que Schclatter também assume a história da salvação.
Voltando a uma abordagem da teologia do NT, que como pôde-se observar, a primeira fase foi abordada por Hoffmann e Schlatter. Hasel dita que até mesmo a teologia do NT mais recente de L. Goppelt segue também as perspectivas da história da salvação. Nesse contexto aparece B. S. Childs que faz uma grandiosa descrição do “Movimento Teológico Bíblico” que desenvolvera algumas características como ser antagônica aos sistemas filosóficos, comparar o pensamento grego com o hebraico, dar ênfase a unidade dos Testamentos, crê na singularidade da Bíblia a despeito de seu ambiente, contraria a teologia “liberal” e criam na revelação de Deus na história. Desse modo produziu também uma teologia esse movimento. Porém B. S. Chils diz que com o fim do Movimento Teológico Bíblico como força dominante no cenário teológico norte-americano faz-se necessária uma nova teologia bíblica. Para Childs “a empreitada da teologia bíblica é uma disciplina diferente tanto da teologia do AT como do NT”.